DIÁRIO DE BORDO
Residente Marya Fernanda
1ª aula, expressão corporal e dança Butô com prof. Marcelo Ferreira:
Há muito tempo eu me interesso pela dança, apesar de nunca ter sido um referencial no assunto. Acredito assim como sempre é dito pela nossa professora Ivny, que o corpo é o nosso transporte para terra. Por isso o meu desejo e curiosidade pela dança não eram apenas recreativos ou cenográficos, eram na verdade a minha consciência dizendo: O dia em que eu conseguisse me expressar corporalmente com fluidez e espontaneidade, eu estaria realmente livre, e teria alcançado uma nova perspectiva de mim mesma e da minha arte, principalmente, a forma que transmito a mistura desses dois ao mundo.
A Arte para mim sempre foi a subjetividade gasosa que flutua na nossa atmosfera, sempre invisível e introspectiva. O corpo era um segundo plano, muito óbvio, material e dispensável para esse exercício. Além do mais, eu nunca me senti representada pelas danças que via nas festas e na internet, talvez realmente não fosse para mim. Admiro quem consegue e reconheço que essa é uma arte para espíritos livres, pois elas estão expressando o que tem dentro de si, e nesse caso, eu tenho muitos bloqueios e medos.
Quando soube que estudaríamos o tema fiquei ansiosa, para o bem e para o mal. O Marcelo nos passou a leitura do livro “Treino e(m) poema” do professor de dança Butô “Kazuo Ohno”, e eu super insegura decidi que leria e livro de forma que a minha falta de técnica, não superaria o meu conhecimento a respeito dela.
Para a minha surpresa, o livro dizia tudo ao contrário. Kazuo Ohno dizia a respeito de dançar pensando em nada, e o que ele chamava de “técnica” eu nem conhecia ainda. A forma que ele mistura temas existenciais, religiosos, poéticos e filosóficos em sua dança, fez com que eu me interessasse agora de maneira despretensiosa. Me chamou muito a atenção a forma que ele falava sobre o “nada” nas performances, e o esvaziamento da mente como uma forma de iluminação. Fez tanto sentido, pela primeira vez eu senti a subjetividade artística que citei se misturando ao meu corpo, como uma nova possibilidade de poesia.
Fiquei até constrangida, cheguei procurando por algo estável e entendível, e sai não entendendo nada, apenas sentindo tudo. Apliquei isso a minha vida pessoal, e pela primeira vez em alguns anos, apenas por ter lido esse livro e tido uma amostra de coreografia com o Marcelo nessa aula, consegui me sentar e escrever uma poesia de quatro páginas. Como já deu para perceber, eu falo e penso muito mesmo! Hahahahah. Escrevi sobre o “nada” e a forma que ele impactou a minha vida após essa leitura, foi um estopim para que eu me abrisse novamente, e com muita sensibilidade.
2ª aula, introdução a poesia com a profª Ivny Matos:
Não preciso nem dizer que essa aula me causou uma ansiedade diferente né? Em 2018 eu tive a oportunidade de ser aluna da Ivny, e a minha vida mudou depois disso. Poesia é um tema muito escasso por aqui, então eu não via a hora de ouvi-la falando sobre novamente, mesmo que fosse online. Além do mais, ela é uma referência no município e no estado pelo seu trabalho e personalidade, ser sua aluna pela segunda vez é muita sorte.
A relação que tenho com a poesia é diferente de tudo o que eu faço, ela é a única coisa que encontrei que fala o idioma da minha alma, por isso essa aula é tão especial. Chega a ser minha religião, pois sempre que me conecto a ela eu sinto pura espiritualidade, algo como “magia”, chega a ser metafísico. Pensar poético virou cotidiano e qualquer um pode testemunhar que é meu estilo de vida, mesmo quando não escrevo. Meus amigos chegam a comentar que sou otimista e feliz o tempo inteiro. Não acho isso, mas se aparentemente eu sou alegre acima da média, isso se deve ao fato de que todas as manhãs eu sou tomada por um êxtase poético, que eu juro de pé junto que enfeita todos os meus momentos, me mostra a subjetividade de tudo, e me enche de gratidão. Essa é a minha fé.
Por isso eu estava muito ansiosa, e a aula atendeu a todas as expectativas! Falamos sobre poesia e poema, e de uma forma tão didática que até quem nunca havia escrito oficialmente, entendeu e ficou inspirado. Ouvimos as histórias de cada um com a escrita, o que foi muito interessante levando em conta que todos já nos conhecíamos, mas não dessa perspectiva. Nessa etapa cada um recitou um poema que nos representava pessoalmente, eu escolhi “Livro Sobre Nada” do Manoel de Barros, pois narra bem a relação e visão que tenho com as palavras:
O livro sobre nada
É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.
Sou muito preparado de conflitos.
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
O meu amanhecer vai ser de noite.
Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.
Meu avesso é mais visível do que um poste.
Sábio é o que adivinha.
Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
A inércia é meu ato principal.
Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.
Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.
Peixe não tem honras nem horizontes.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.
Eu queria ser lido pelas pedras.
As palavras me escondem sem cuidado.
Aonde eu não estou as palavras me acham.
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim.
Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.
Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.
O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
Por pudor sou impuro.
O branco me corrompe.
Não gosto de palavra acostumada.
A minha diferença é sempre menos.
Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.
Não preciso do fim para chegar.
Do lugar onde estou já fui embora.
3ª aula, prática de expressão corporal com prof. Marcelo Ferreira…
Montamos o estúdio para a primeira prática, e eu não esperava que fosse ser tão cansativo!! O fato de tudo ter sido executado pela telinha do celular dificultou um pouco mais, porém tivemos uma amostra da performance extraordinária que iremos montar. Aprendemos um pouco do repertório de movimentos possíveis, e o seguimos nos passos. Eu ainda não conseguia entender como tudo aquilo sairia naturalmente, mas é uma dança totalmente expressiva, e precisávamos resgatar sentimentos para executa-la. Nunca senti tanto na pele aquele verso de Fernando Pessoa: O poeta é um fingidor!”.
Brincamos com os ângulos da câmera, aproximávamos, olhávamos como se estivéssemos bisbilhotando o outro lado, sumíamos. Aprendemos muitos movimentos rápidos, que traziam sensação de ansiedade, raiva, impulsividade. Além disso aprendemos sobre posições básicas para a dança, que lembravam bastante balé clássico. E por fim, fizemos uma dinâmica em grupo onde dançamos sozinhos e coletivamente pela primeira vez. Essa parte foi ainda mais cansativa!
Ver a desenvoltura que cada um teve foi muito especial, em suas particularidades e expressões da alma. Alguns residentes como o João e a Bruna dançaram como verdadeiros poetas dançarinos!! Os dois são muito experientes e foram ótimos, assim como a Fabiana e o Daniel. Eu ainda sinto um bloqueio.
4ª aula, leitura de poemas autorais com profª Ivny Matos:
Para essa aula eu fiquei um pouco insegura, tentando buscar as metáforas propostas pela Ivny na última aula. Havia consultado ela em particular para tirar algumas dúvidas, ela sempre é muito acessível e me deu mais segurança. Fiz três tentativas, e na última decidi arriscar. Agora devemos trazer um poema autoral todas as terças, nada rebuscado ela disse, apenas brincadeiras com as palavras, o que é uma baita dificuldade para mim, que adoro discursar e fazer poemas longos. A proposta foi justamente aprender a fazer poesia com qualquer coisa, sem precisar necessariamente de uma super inspiração, e usar o máximo possível o poder de síntese, porém sem incompletude.
Não obtive muito sucesso na primeira tentativa nesses aspectos, meu poema foi justamente sobre a minha revolta comigo mesma, por não conseguir dizer coisas sem grandes pesos e significados, por medo de serem medíocres. Também foi revolta contra a sociedade, que nos obriga a ser sérios, literais e assertivos o tempo inteiro. O contrário disso deixa a falsa sensação de que nossas falas são “improdutivas”. Eu particularmente tenho me sentido incapaz e tido bloqueios criativos devido a esse “amadurecimento” forçado da comunicação, que nos faz repensar milhares de vezes e censurar todos os nossos dizeres. Fiz algumas referências a poetas que gosto muito como Fernando Pessoa e Manoel de Barros, já citados aqui.
Meu poema se chama “Aversão à Dicionários” e é assim:
“Quero uma palavra que caíba na boca dos passarinhos,
Uma palavra sem sensura,
Que signifique Nada,
Que não acrescente conteúdo à um livro sequer.
Uma palavra sem responsabilidade,
Que não me obrigue a dizer algo,
E que não exista com a única finalidade
De me fazer entender.
Quero falar sobre nada que importe,
Preciso de palavras que nasçam na flora de buracos negros.
que não tenham registros,
Para escrever uma dissertação sobre
Coisa nenhuma.
Que todos encarem páginas vazias,
E aprendam o dialeto do inútil.
O gênero descritivo será: “Meditação”
Um passo para acabar com essa pressão “educativa”.
A Ditadura da Língua,
Onde tudo precisa ser relevante,
O crime é falar demais,
Ou de menos.
Falar besteira?
É pedir por cadeia com direito a sessão de tortura!
Dizem que te sentam em uma cadeira,
E você é forçado a expressar suas
Ideias com clareza.
Não conheço uma pessoa que saiu ilesa.
A maioria hoje em dia faz terapia,
Já os outros, soube que no meio do processo
Explodiram!
Eu diria como de costume, que seus corpos nunca foram encontrados.
Mas não é tão simples,
Pois eles estão por aí.
Você os encontra em qualquer barzinho de esquina,
Porém explodidos,
De raiva,
De confusão,
De sentimento que não se expressa.
Pois bem, ficaram as sequelas:
Nunca mais tentaram dizer nada,
se tornaram a massa.
O problema é que palavra presa é perigosa,
Igual Bomba de Hiroshima
Se não mata na hora,
Muta seu código genético.
As mutações que virão são imprevisíveis,
Apenas se sabe que todos ficam
Irreconhecíveis.
Por isso, faço essa exigência que é questão de saúde pública:
Que sejam criadas palavras que digam Nada,
Ou palavras que explodam!
Tudo no meio disso é danoso.
Dispensemos clarezas,
Digamos qualquer coisa irracional e burra,
Mas que essa coisa chore,
Que brinque de roda,
Que ria alto,
Que desfrute do cigarro com café,
Que emocione,
Tudo isso, seja o que for, que sejas,
Se pode inspirar
Que inspire!
Como já dizia o falador Fernando Pessoa,
Mestre das palavras que choram.
E também, como já dizia o estúpido Manoel de Barros,
Também mestre das palavras que não importam:
Só me darei por satisfeita quando de todas as orações subordinadas da Língua Portuguesa,
Ao menos uma conseguir se fazer entender
Com apenas um grito,
Por todas as pedras.
O esboço dele ficou assim:
5ª aula, Parte II da prática de expressão corporal com prof. Marcelo Ferreira:
Nessa aula eu sofri, não sei o que houve, mas as “máscaras” que o Marcelo nos ensinou, o olhar perdido, os detalhes, e os novos passos que aprendemos me deixaram fragilizada. De fato ele ministrava sobre como demonstrar vulnerabilidade na performance, com as costas encurvadas e os joelhos flexionados. Talvez eu esteja conseguindo me abrir mais a essa altura, me entregar e resgatar sentimentos realmente sentidos através da dança, que é o objetivo. Só sei que sofri, acabei a dança com uma angústia no peito, uma melancolia… Gostosa. Apesar de não ser meu gênero teatral favorito, não posso negar que é eficaz!
Ansiosa pelo roteiro e ensaios oficiais!
6ª aula, análise de poema e música com profª Ivny Matos:
Nessa aula nós deveríamos ter levado um outro poema autoral, mas todos reclamaram de falta de inspiração. Por isso a Ivny fez questão de ressaltar que esse exercício é para que aprendamos justamente a produzir em qualquer circunstância, como uma proposta de aprendizado, técnica e insight cada vez melhor a longo prazo. A dica que ela deu foi nos aprofundarmos em uma palavra só, alguma que esteja muito presente em nosso cotidiano, e pesquisarmos tudo a respeito dela. Disse que naturalmente nosso cérebro irá processar todas as informações, e as chances de que o melhor poema de nossas vidas surja disso é muito grande!
Além disso, cresceu a lista de dever de casa. Agora além do poema, devemos trazer uma foto, e um vídeo poético todas as aulas. Eles devem ter relação com o curso, músicas, referências locais e etc.
A par disso, lemos o poema “Tabacaria” de Fernando Pessoa, e comentamos a respeito. Também ouvimos a música “Nova Ordem Mundial” do Caetano Veloso, e discutimos sobre o por quê essa é uma música poética, e o que nos faz concluir que existe poesia é uma composição musical.
Porém o que mais me chamou a atenção, foi o comentário que a Ivny fez sobre aproveitarmos ao máximo o curso. De fato algo como o que estamos fazendo é parte do nosso sonho de criar uma carreira artística consolidada, e devido aos nossos contextos pessoais e a pandemia, acabamos tirando tudo por menos. Depois disso estarei mais atenta, e tentarei no mínimo entregar o dever de casa rs.
Cidade dos Ventos
Meu destino e minha despedida
são no templo de Fujin.
A chegada é anunciada
Na encruzilhada entre
rio e mar,
Suas rajadas vêm informar
que chegamos aos limites de casa.
As janelas gritam,
Os cabelos embaraçam em pânico,
e as roupas tremem
Ao toque dos Venti guardiões
do palácio,
que nos observa cruzar com seus grandes olhos janela
como Das Águias,
como torre vigia.
É a torre dos ventos,
diretamente de Atenas.
Esse território guarda divindade,
pois o mesmo Kamikaze que
defendeu exércitos inteiros,
espalhou marinheiros,
descobriu colônias,
e que no princípio
limpou da Terra o nevoeiro que a cobria,
É o mesmo vento que espalha nossas sementes,
Garante nossos surfistas,
E esfria meu café,
que inutilmente insisto em levar ao entardecer do mar.
Talvez o centro do planeta,
Pois, como diz o ditado:
"O vento que sopra lá,
sopra cá".
Se depender disso,
aqui se reúnem Peru, Espanha e Egito.
Afinal, o nosso Nordestão tem potencial para rajada global,
pode confiar!
E enquanto trás tanto de tantos, levaria consigo ao mundo
Partículas do nosso sotaque cantado,
De nossa maresia,
Do cheiro de mel frutado,
E de peixe recém chegado no porto.
Assim vai seguindo,
Sempre global e circular,
Nos trazendo e levando de volta
Nunca no meio do caminho.
Sempre escoltados pelos Venti,
que assim como nos receberam,
nos deixaram,
e um calor abafado invadiu o ônibus.
Assim somos nós,
pássaros equilibristas.
Sobrevivendo dia após dia
em nossas árvores de ferro,
esperando o entardecer
para encontrar nosso refúgio quente,
em meio a tanto aço frio.
Sempre equilibrados na linha tênue,
da vida frágil e efêmera
que descansa pousada em
fios de alta tensão.